Os Direitos Humanos e a Doutrina Social da Igreja
Sua Eminência Rev.ª Cardeal José Saraiva Martins com o Presidente do Líbano, General Michel Sleiman.
Gostaria de apresentar os direitos humanos e a doutrina social da Igreja referindo-me, de um modo especial, ao magistério do beato João Paulo II.
O fundamento natural dos direitos humanos é colocado pela doutrina social da Igreja na dignidade humana; dignidade da pessoa criada à imagem e semelhança de Deus, Pai e Criador. Assim, segundo a perspectiva da doutrina social da Igreja, a fonte última dos direitos humanos, como afirmou o papa João XXIII, não se situa na simples vontade dos seres humanos, nem na realidade do Estado, e menos ainda, nos poderes políticos; mas sim no próprio homem e no seu Deus Criador, e tais direitos são “universais, invioláveis e inalienáveis” (Pacem in terris, 55).
A universalidade de tais direitos é constatável pelo facto desses direitos estarem presentes em todos os homens sem nenhuma distinção. Invioláveis enquanto “inerentes à pessoa humana e à sua dignidade”[1] e porque “seria em vão proclamar tais direitos, se ao mesmo tempo não se fizesse um esforço, de modo a que seja devidamente assegurado o seu respeito por todos, ou pelo menos, no confronto de cada um”[2]. Por último são inalienáveis enquanto “ninguém pode legitimamente privar destes direitos um seu semelhante, seja ele qual for, porque isso significaria violentar a sua própria natureza”[3].
Um aspecto ulterior que qualifica a visão que a Igreja defende dos direitos humanos é a sua integridade. Esses são tutelados não só singularmente, mas, no seu conjunto, pois uma protecção selectiva significaria a sua falta de reconhecimento. Tal reconhecimento consiste no corresponder às exigências da dignidade humana e implica a satisfação das necessidades essenciais da pessoa, quer sejam no campo material como no campo espiritual. Escreveu João Paulo II: “tais direitos dizem respeito a todas as fases da vida e a todos os contextos políticos, sociais, económicos e culturais. Todos esses formam um conjunto unitário, orientados, de forma determinada, para a promoção de todos os aspectos do bem da pessoa e da sociedade… A promoção integral de todas as categorias dos direitos humanos é a verdadeira garantia do pleno respeito de cada um desses direitos”[4] . A partir de tal argumento, João Paulo II conclui que a universalidade e indivisibilidade representam um traço distintivo dos direitos humanos. Vistos na perspectiva da doutrina social da Igreja: “são dois princípios-guias que colocam a exigência de enraizar os direitos humanos nas diferentes culturas, do mesmo modo que o seu enquadramento jurídico para assegurar o seu pleno respeito”[5].
Sobre o tema dos direitos humanos, a doutrina social da Igreja propõe ainda os ensinamentos do papa João XXIII, e em particular da encíclica Pacem in terris; o Concílio Vaticano II (de modo particular na Constituição Pastoral Gaudium et Spes e na Declaração Dignitatis humanae); e o Magistério de Paulo VI (como por exemplo, o Discurso à Assembleia geral das Nações Unidas, a 14 de Outubro de 1965). Serão sobretudo estes documentos a oferecer a João Paulo II a trama de fundo e as fontes necessárias que lhe permitirão traçar o elenco dos direitos humanos na Centesimus annus: “o direito à vida, do qual é parte integrante o direito de crescer no seio materno, depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral que favoreça o desenvolvimento da própria personalidade; o direito a desenvolver a própria inteligência e a própria liberdade na busca e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e buscar nele o sustento próprio e dos seus; o direito a constituir livremente uma família e a acolher e a educar os filhos, exercendo responsavelmente a própria sexualidade. Fontes e sínteses destes direitos é, dum certo modo, a liberdade religiosa, vista como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a transcendente dignidade da própria pessoa” (Centesimus Annus, 47).
O que chama a atenção na doutrina de João Paulo II é a hierarquia dos direitos humanos por ele delineada. Ele coloca em primeiro lugar, o direito à vida, desde a concepção até ao seu fim natural. Tal direito condiciona o exercício de cada um dos outros direitos e comporta a ilegalidade de todas as formas de aborto e de eutanásia. O segundo aspecto que chama a atenção do leitor nesta hierarquia de valores, é o facto de o papa ter colocado como fonte e síntese de todos os valores a liberdade religiosa. Assim, diz a Declaração Dignitatis humanae: “todos os homens devem manter-se imunes à constrição, quer seja da parte dos indivíduos, quer seja dos grupos sociais ou de qualquer autoridade humana, de que em matéria religiosa, dentro de certos limites, nenhum seja forçado a agir contra a sua própria consciência, nem seja impedido de agir segundo a sua própria consciência, em privado ou em publico, individualmente ou associado com outros” (DH, 2). O respeito de tal direito, na prática, afirma João Paulo II na Encíclica Redemptoris hominis, representa a medida do autêntico progresso humano em cada regime, em cada sociedade, sistema ou ambiente.
É característico de cada abordagem adoptada pela doutrina social da Igreja estabelecer a ligação inseparável entre direitos e deveres. João XXIII na Encíclica Pacem in terris lembra que “na convivência humana cada direito natural duma pessoa comporta um respectivo dever em relação às outras pessoas: o dever de reconhecer e respeitar tal direito” (PT, 55). Ao mesmo tempo, a Igreja sublinha o quanto seria contraditória uma noção de direito que não previsse uma responsabilidade correlativa: “Aqueles, que reivindicam os seus próprios direitos, e esquecem ou não dão a devida importância aos respectivos deveres, correm o risco de construir com uma mão e destruir com a outra” (PT, 55).
Hoje, aquilo que se defende para os homens é o mesmo que se defende para os povos e nações. Com determinação, o Magistério da Igreja recorda que o direito internacional “assenta sob o principio de igualdade para os Estados, ao direito à autodeterminação de cada povo e da liberdade de cooperação em vista ao superior bem comum da humanidade”[6]. A paz constrói-se no respeito pelos direitos dos homens, mas, também, no respeito pelos direitos dos povos e, em especial, pelo seu direito à independência.
Somos levados a ir mais ao mais fundo da problemática e perguntar-nos, afinal o que são os direitos dos povos? João Paulo II diz-nos que esses não são mais do que “os direitos humanos considerados no nível específico da vida comunitária”. Tirando deste princípio as consequentes implicações, e seguindo aquilo que será a continuidade de principio do magistério, sublinha, pois que cada Nação tem “ o direito fundamental à existência, à própria língua e cultura, mediante as quais um povo exprime e promove a sua “soberanidade espiritual”. Alem disso, a “modelar a própria vida segundo as tradições próprias, excluindo, naturalmente, toda a forma de violação dos direitos humanos fundamentais e, em particular, a opressão das minorias”. Por último, e não menos importante, a construir o próprio futuro promovendo às gerações mais jovens uma “educação apropriada”.[7]
João Paulo II, assumindo o Magistério social dos seus predecessores, sublinha, por último, que a ordem internacional precisa de um equilíbrio entre particular e universal, ao qual todas as Nações e todos os povos são chamados a dar o seu particular contributo. Neste sentido viver numa atitude de paz, de respeito e de solidariedade com as outras Nações, representa o primeiro dever dos homens e dos povos, independentemente da sua etnia, da sua cor, da sua história e da sua cultura.
Cardeal José Saraiva Martins
[1] GIOVANNI PAOLO II, Messaggio per la Giornata Mondiale della Pace 1999,3:AAS, 91 (1999), 379.
[2] PAULO VI, Messaggio alla Conferenza Internazionale su diritti dell’ uomo (15 aprile 1968):AAS, 60 (1968), 285.
[3] GIOVANNI PAOLO II, Messaggio per la Giornata Mondiale della Pace 1999,3:AAS, 91 (1999), 379.
[4] Ibidem.
[5] GIOVANNI PAOLO II, Messaggio per la Giornata Mondiale della Pace 1998,2:AAS, 90 (1998), 149.
[6] GIOVANNI PAOLO II, Lett. Nel cinquantesimo anniversario dell’inizio della Seconda Guerra mondiale, 8:AAS, 82 (1990), 56.
[7] GIOVANNI PAOLO II, “Discorso all’ Assemblea General delle Nazione Unite per la celebrazione del 50º di fondazione” (5 ottobre 1995),8: Insegnamenti di Gionanni Paolo II, XVIII,2 (1995), 736-737.